quarta-feira, 20 de abril de 2011

Texto destinado ao debate com o Ministério Público em Passo Fundo

MANHÃS DE SOL NO CHÃO DA PRAÇA

Prof. Dr. Solon Eduardo Annes Viola[1]
Thiago Vieira Pires[2]

“...Olhos abertos o longe é perto
O que vale é o sonho...”[3]


A manhã de domingo me surpreende por estar plena de sol, depois de uma semana repleta de chuva, e pelas manchetes dos jornais. A mídia passou a semana toda a debater manifestações conservadoras de um deputado do Rio de Janeiro para quem “os Direitos Humanos são o estrume da bandidagem”, e agora, nos jornais de domingo, editoriais e notícias reconhecem que o preconceito contra A ou B está enraizado em setores consideráveis da sociedade brasileira. Setores que elegem e apóiam o discurso feito a partir do “anti” ou do “pré”, discurso que segrega, sedimenta e condena antes. Chego a me perguntar se as manchetes e os editoriais podem significar uma manhã ensolarada de domingo para as corporações proprietárias da grande mídia e, especialmente, se este sol pode ser o da manhã dos direitos humanos.
Ingênuo? Pode ser. Outras manchetes, nos mesmos jornais, demonstram minha ingenuidade enquanto revigoram a cultura do pré-concebido e continuam atribuindo a miséria ao miserável, a pobreza ao pobre, a discriminação ao discriminado, o triunfo do racismo àqueles que são as suas vítimas históricas.
As nuvens do pensamento pré-concebido são pesadas, negam os direitos humanos como já negaram a democracia, recusam a procura da verdade e do desvelamento da história, do mesmo modo que os Cúmulos e Nimbos negam o sol da manhã. Ao fazê-lo, fortalecem as correntes de pensamento que elegem e reelegem bancadas; manifestam-se exigindo intervenções nacionais ou internacionais feitas para garantir um tipo de ordem que preserva privilégios de uns e desconhece os direitos humanos enquanto direitos inerentes à condição humana.
Foi para superar esta cultura de privilégios e preconceitos que os movimentos sociais assumiram os princípios dos direitos humanos como pressuposto para a superação dos Cúmulus-Nímbos das ditaduras latino americanas. Foi de tanto ver as torturas, as mortes e os desaparecimentos e, ao mesmo tempo, para recuperar as liberdades e os anseios de igualdade, que as sociedades se organizaram em movimentos e ocuparam espaços nos palcos, nas praças e nas cidades. Foram tantos os movimentos, e tantas vezes presentes, que os Palácios assustados refizeram suas fachadas trocando carrancas torturantes por acenos de acolhimento; seus óculos escuros e orelhas surdas, por olhos atentos e “ouvidos dispostos a ouvir sem preconceito” [4].
O projeto societário baseado nos princípios dos direitos humanos chegou tardiamente à América Latina e ao Brasil. Ao chegar deparou-se com uma sociedade construída sob a ótica do privilégio de poucos e a negação da condição humana para a maioria. Quase se perdeu entre o preconceito e o pré-concebido. Manteve-se, como projeto societário, pelas infindáveis carências de pão, de moradia, de sistemas de ensino e de saúde. Manteve-se pelo imenso desejo de viver, se fazer atuante e exigir que tudo se faça, e se refaça, numa relação intensa de conflitos e consensos, entre a praça e o palácio, ou seja, entre a sociedade civil e o Estado. Pela esperança, um tanto ingênua, de que o Estado seja capaz de escutar as vozes que vem da sociedade e que se refaça num Estado capaz de servir à sociedade que o criou e o ampara. Mais ainda que a sociedade seja capaz de reconhecer o Estado como seu.
Pergunto-me se no parágrafo acima não manifesto outra ingenuidade, a de confundir vontade com possibilidade. Sem dúvida há algo de ingenuamente esperançoso, mas não vejo ingenuidade ao reconhecer os imensos avanços feitos nas duas últimas décadas, mesmo quando penso nos direitos sociais e econômicos. Finda a primeira década do século XXI mais brasileiros tem acesso à alimentação e à moradia, mais crianças e jovens passaram a freqüentar o sistema de ensino e nossa democracia representativa parece estar sólida, apesar de nossa democracia participativa ser ainda tímida em demasia.
Mas sim, pode haver ingenuidade no sentido de que estamos ainda muito longe de alcançar um patamar que identifique uma sociedade organizada, pelos princípios da igualdade e da liberdade. Nessa perspectiva temos muitos desafios a enfrentar.
No campo da justiça, por exemplo, ainda estamos longe de vivenciar os direitos já garantidos em lei, especialmente para as camadas empobrecidas e marginalizadas da sociedade. Muitas vezes esses setores sequer têm acesso aos diferentes sistemas jurídicos, embora seja deles que se origine o maior percentual de condenados à prisão. Especialmente para os que atuam em diferentes campos do sistema de justiça, é indispensável reconhecer e fazer valer os direitos daqueles que vivem em condições de miséria e pobreza e não conhecem seus direitos e nem a eles têm acesso. Assim, por ironia talvez, o próprio universo da justiça recuse os direitos humanos a quem deles mais necessita.  
Como não se perceber ingênuo, e manter a esperança na consolidação da democracia, quando o sistema de justiça continua lento, sobrecarregado, susceptível à pressão social e ineficiente em suas ações.
Como não se sentir ingênuo quando nossos sistemas de saúde e educação carecem de recursos e nossas crianças e jovens ficam expostos, com freqüência cada vez maior, a condições de descaso quando não de irresponsabilidade e violência do Estado contra a sociedade [5].
A sociedade civil brasileira avançou, mesmo que tardiamente, na defesa de seus direitos enquanto o Estado busca responder às pressões que recebe. De um lado o Estado produz Planos Nacionais para implementar as demandas dos movimentos sociais, de outro, avança lentamente reconhecendo que as questões que dizem respeito aos direitos humanos são questões relacionadas a um modelo de organização social e dizem respeito a espaços de poder. Questões delicadas quando, desde sua gênese, o Estado esteve a serviço de privilégios, portanto, descomprometido com ações no campo dos direitos humanos, situação que se agravou radicalmente ao longo da década de 1990 quando o pensamento hegemônico considerava que só a economia era séria e tudo que fosse orientado para o social era perdulário e inconseqüente[6].
Mais delicadas ainda quando setores do Estado e da própria sociedade civil receiam olhar para a história nacional negando-se a recuperar o passado através da reconstituição da memória. Recusar a revisão do passado, ou mantê-lo envolto em densas nuvens de chumbo, é impedir que a nação se reencontre no presente e projete, para o futuro, uma sociedade mais igual e socialmente mais justa. Uma sociedade na qual o sol da manhã não precise, envergonhado, ocultar sua luz. Uma sociedade na qual a praça se faça ouvir pelo palácio; e o palácio, escutando a praça, realize os sonhos que dela emanam.


[1] Doutor em História pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos - Unisinos. Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Unisinos e Coordenador do Comitê Nacional de Educação em Direitos Humanos.
[2] Graduando em Ciências Sociais pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS. Bolsista de Iniciação Científica UNIBIC.
[3] Desgarrados composição de Sérgio Napp e Mário Bárbara.
[4] Estatuto do Homem, de Thiago de Mello.
[5] Nos últimos anos, em importantes unidades da federação, por razões de ordem econômica, fecharam-se prédios escolares levando a ampliação do transporte escolar e a utilização de alternativas inadequadas para abrigar os estudantes do ensino fundamental.
[6] RIBEIRO, Renato J. A sociedade contra o social: O alto custo da vida pública no Brasil. São Paulo: Cia. das Letras, 2000.

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